“Antigamente não havia nada disto e
vivia-se na mesma”
avô
Avô, finado aos noventa,
Sem nunca acreditar que homem
Ou bicho pusesse pata na Lua.
Já no tempo dele se levantavam queixas.
Meu avô contra a ciência galopante paria palavrões.
Uma ciência que paria a cura para moléstias.
“Exageros conservadores” – dirão alguns (e serão).
Por monstros anda perseguido o homem
Palavrões que a modernidade pariu
Palavrões sem licença
Palavrões sem a licença do meu avô.
A ciência nos arreliou a vida
Com uma colecção de monstruosidades verbais
Que nos estarrecem e fazem a vida negra como breu.
A ciência arreliou a nossa vida
Muito descansada a deglutir feijoada de pernil
Ou um arrozinho de pato.
Chegou a ameaça dos palavrões:
Triglicéridos, glicose, displicémia,
Osteoporose e esse danado do AVC.
Chegou a ameaça ás canalizações do cérebro
Com bocados de orelheira fumada;
A ciência pode - nos deixar tombados de vez.
E o enfarte de um tal enfarte do miocárdio;
À conta de cabidelas e postas barrosãs
Arroz doce e pudim de priscos.
O desgraçado colesterol
Põe - nos como um mendigo
A deglutir pão e água;
- Que não é pecado por aí além.
Mas a peregrinação não se fica por aqui.
De caneta na mão, o bom do cidadão
Sabia da contabilidade e finanças,
Duas colunas: uma do deve, outra do haver.
Das despesas e receitas:
De uma assentada a ordem económica.
Mas uma horda vândala de economistas invadiu-nos
Com a inflação, a euribor, o rácio,
Os plafonds, as OPAs, e, como se a língua lusa
Já não tivesse contracurvas e palavrões que bastassem
Ainda foram na lenga-lenga britânica
Um rol de dores de cabeça, tais como: marketing,
Crash, joint-venture, target, royalty, staff, chairman,
Offshore e por aí fora uma horda de
Vândalos economistas trataram das nossas duas colunas
Que se perdeu a contabilidade
Na confusão da tal “engenharia financeira”
O remédio certo para os apertos de algibeira.
Pobre cidadão, a contar pelos dedos,
Na era digital e dos megabites.
Até a ordem natural do bem e o do mal
Na nossa mentalidade de gente
A julgar que a Justiça era uma ciência exacta
Do réu e acusado, culpado ou inocente – se virou do avesso
Com a invasão quotidiana de arguidos,
Prescrições, actos persecutórios, providências cautelares
Auditorias, termo de identidade e residência,
Acções sumárias, instâncias, etc., etc., etc.
E assim o humilde viajante deste mundo
Se enredou na teia dos pesadelos gerados por médicos
Economistas, doutores e engenheiros.
O homem de hoje vive cercado de palavrões,
De termos assustadores,
Inibidores da sua condição de humano singelo
Á procura de entender o que o rodeia.
São os monstros da modernidade,
Ogres que nunca se saciam
E que fazem da nossa vida
O pasto onde rapam o que resta do nosso sossego.
Bicho cercado no mato da retórica,
Atiçado pela matilha verbal,
O homem já não tem saco
Nem o seu pernil com feijão
Sem que se plante a mão ameaçadora
Do clínico, a avisar: - “Olha as cardiovasculares!”.
Belos tempos em que a vida andava
Mais aliviada destas coisas novas
Que parece terem sido inventadas
Para nos tornar mais infelizes.
Belos tempos em que o arroz de pato
Não sabia a colesterol.
A partir do texto original de Francisco Gouveia (7/12/07)